A onda conservadora bateu no teto e o a sociedade brasileira já começa
a reagir. Quem aposta nisso é o ministro da Cultura, Juca Ferreira. Em
entrevista exclusiva ao 247, ele aponta o que seria o início de um processo de
"tomada de consciência" por parte da elite pensante.
Lia de Paula, entrevista ao Brasil 247.
O ministro da Cultura, Juca Ferreira O ministro da Cultura, Juca Ferreira
"A direita encontrou uma base social, que lhe dá uma
coerência nessa agenda conservadora. Uma agenda que envolve flexibilização dos
direitos dos trabalhadores, redução da maioridade penal, ataques aos direitos
civis dos gays e da população LGBT, além de intolerância religiosa. Há um
ataque a todo o ambiente de costumes bastante tolerantes no Brasil. Isso tudo
assusta a sociedade e mostra que a movimentação não é apenas contra o PT e
contra o governo. É contra as conquistas que foram afiançadas pelo governo
Lula, pelo governo Dilma e pelo PT", diz ele.
Segundo Juca Ferreira, as bancadas "da bala, da bola,
da bíblia e do boi" não representam a tradição brasileira. No depoimento a
Tereza Cruvinel, Paulo Moreira Leite e Leonardo Attuch, ele enfrentou temas
polêmicos. Disse, por exemplo, que Cristo aprovaria o gesto da transexual
Viviany Beleboni, que se manifestou numa cruz, na última Parada LGBT, em São Paulo.
Afirmou ainda que irá enfrentar as grandes corporações de tecnologia, como o
Google, na luta para preservar os direitos autorais dos artistas. E afirmou que
a Lei Rouanet, "ovo da serpente do neoliberalismo", tem que acabar.
Leia, abaixo, a íntegra:
247 – Gilberto Gil e Caetano Veloso se declararam na semana
passada assustados com o momento político e o avanço do conservadorismo. Como o
sr. vê a onda conservadora e a posição do mundo artístico?
Juca Ferreira – Esse avanço conservador está batendo no
teto. Até porque a agenda programática desse movimento é assustadora não apenas
para Caetano e Gil, como para o Brasil inteiro. Eles querem fazer com que o
Brasil retroceda à Idade Média, época em que o Brasil não existia.
Existe uma agenda programática?
A direita encontrou uma base social, que lhe dá uma
coerência nessa agenda conservadora. Uma agenda que envolve flexibilização dos
direitos dos trabalhadores, redução da maioridade penal, ataques aos direitos
civis dos gays e da população LGBT, além de intolerância religiosa. Há um
ataque a todo o ambiente de costumes bastante tolerantes no Brasil. Isso tudo
assusta a sociedade e mostra que a movimentação não é apenas contra o PT e
contra o governo. É contra as conquistas que foram afiançadas pelo governo
Lula, pelo governo Dilma e pelo PT. Se não bastasse, há ainda os ataques ao
Estado laico e às conquistas institucionais da democracia brasileira.
O principal artífice dessa agenda é o deputado Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados?
Juca Ferreira – Hoje o deputado Cunha diz com todas as
letras que a proposta do "distritão" tinha como objetivo inviabilizar
o PT. Ou seja: manipula-se a cena política com metas muito pequenas.
Na semana passada, a
Folha de S. Paulo publicou um editorial de página inteira contra o suposto
obscurantismo representado por Cunha. A sociedade começa a acordar?
Juca Ferreira – Não só a Folha. Na área cultural, muitos
começam a acordar. Tivemos a entrevista muito importante da Marieta Severa, o
artigo do Aldir Blanc, o posicionamento do Chico Buarque sobre a maioridade
penal, além de manifestações de vários artistas, como Gil e Caetano. A
sociedade já começa a enxergar os objetivos mesquinhos e menores que estão por
trás de toda essa mobilização conservadora.
Esse projeto conservador pode prosperar?
Esse projeto é inviável. Quebraria todas as tradições e
todos os processos brasileiros. Além disso, esse programa não representa a
grande maioria do povo brasileiro. Eles são estridentes, mas são minoritários,
embora contem com o apoio de parte da mídia, que tem ajudado na construção
dessa onda conservadora.
O mau momento enfrentado pelo PT não ajuda a manter a classe
artística na defensiva?
Juca Ferreira – Os escândalos de corrupção impactaram muito
fortemente a sociedade. Isso criou uma certa perplexidade e uma inibição. Mas
com essa explicitação de um programa conservador, a sociedade começa a perceber
que é preciso resistir. Já estamos vivendo o momento de tomada de consciência,
que é o início de uma reação. Veja o que aconteceu na tentativa de se
inviabilizar a indicação do ministro Luiz Fachin para o Supremo Tribunal
Federal. Os conservadores gritaram, mas a sociedade organizada reagiu. Além
disso, começou a ficar claro, de tempos pra cá, que o PT não seria o único a
ser afetado. Toda a estrutura político-institucional corria o risco de ser
engolida por essa onda, inclusive o PSDB. Tem ainda um outro aspecto: esse
ambiente não contribui para a retomada do crescimento no Brasil.
Os empresários também devem reagir?
Juca Ferreira – Se eu fosse empresário, também estaria
preocupado com o avanço dessa onda conservadora. O ambiente de tolerância, de
convivência democrática e de construção dos avanços pelas instituições, que se
conquistou no Brasil nos últimos anos, hoje está ameaçado. Se essa onda der
certo, o que eu não acredito que aconteça, o País poderá virar uma republiqueta
de bananas, onde as instituições são manipuladas por interesses imediatos e
menores.
O ambiente de tolerância, que é uma das marcas do Brasil,
corre risco?
Juca Ferreira – Sempre fomos um país paradoxal. Ao mesmo
tempo em que há essa violência constante, o país sempre foi muito tolerante,
muito aberto. É um país que tem possibilidade de, na democracia, construir uma
sociedade de iguais. Mas tudo isso está sendo questionado por essa onda
conservadora. Quando fui ministro pela primeira vez, recebi a visita de uma
ministra da Bélgica, que veio nos convidar para uma homenagem feita ao Brasil.
Ela disse algo incrível: que, na Europa, o máximo que conseguiram foi a
tolerância com as diferenças. E afirmou que o Brasil compartilharia as
diferenças com prazer. Isso me fez refletir no caráter autoritário da palavra
tolerância. A tolerância é sempre uma atitude de superioridade do que está
tolerando. Nos interagimos, convivemos e sentimos prazer com as diferenças. O
Brasil que vai vencer é o da diversidade e que vinha experimentando com alegria
a redemocratização. Esse Brasil reacionário, discriminatório e violento, que se
faz representar na política institucional pelas bancadas da bala, da bola, da
bíblia e do boi, será derrotado.
Por falar em bancada da bíblia, como o sr. viu o episódio da
transexual Viviany Belebony que se manifestou numa cruz, durante a mais recente
Parada LGBT em São Paulo?
Juca Ferreira – A crucificação de Cristo é uma imagem que
não pertence só aos cristãos. A apropriação por parte de um segmento que sofre
discriminação, onde muitos são assassinados, é perfeitamente legítima.
Cristo aprovaria?
Aprovaria, sem dúvida.
O sr. não tem ser chamado de 'cristófobo'?
Juca Ferreira – Não. Eu tenho o maior respeito pelas
religiões e pela fé, que é algo grandioso. O que estamos assistindo é a
manipulação da fé por interesses menores. A religião deve se manter distante da
política, respeitando o caráter laico do estado e a diversidade da sociedade
brasileira. Nós temos todas as religiões do mundo aqui no Brasil, convivendo de
forma pacífica. Mas o germe da intolerância pode nos conduzir a uma experiência
negativa, que não podemos subestimar.
Há esse risco?
O Líbano era uma sociedade aberta e que convivia
pacificamente com todas as religiões. No entanto, o país foi inoculado de fora
para dentro pelo germe da intolerância, com o objetivo de desestabilizar
politicamente o país. Hoje, o Líbano é um inferno de guerras sectárias e de
conflitos entre segmentos religiosos.
Como o sr. viu o episódio da criança apedrejada após sair de
um culto de umbanda?
Juca Ferreira – Inaceitável, assim como os traficantes
evangélicos que estão expulsando os candomblés dos morros que dominam. Isso é
muito simbólico da inversão total de valores. Cristo não apoiaria nem se
sentiria representado por esses traficantes evangélicos.
Qual é a sua posição sobre o ensino religioso nas escolas,
tema que será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal em breve?
Juca Ferreira – O ensino religioso é um problema. Temos que
constituir uma sociedade que aceite a multiplicidade cultural. Ele valeria se
fosse no sentido de informar o que são as religiões, como parte da história e
da cultura. Aliás, isso já está no Plano Nacional da Educação. É preciso ter um
tratamento generoso a todas as crenças, com respeito às religiões de origem
afro. Se houver catequese dentro das escolas, o Brasil ficará menor.
Mas também não se deve chegar ao extremo francês, onde
ninguém pode usar um véu, concorda?
O modelo brasileiro. Cada um se manifesta da maneira que
quiser, sem imposição. E as pessoas aceitam. Por exemplo, na Bahia, quem usa
branco nas sextas-feira não são apenas os seguidores do candomblé.
Qual a sua posição sobre o fato de dois grandes ídolos da
música brasileira, que são Gil e Caetano, aceitarem cantar em Israel, a
despeito do apartheid promovido contra os palestinos?
Juca Ferreira – Gil disse que está indo lá não tocar para os
que discriminam os palestinos nem para o estado de Israel, mas sim para uma
sociedade plural, em que parte significativa aceita o povo palestino e condena
a política de Israel. Mas eu, se estivesse no lugar deles, não iria. Mas não
julgo a posição dos dois.
Na área cultural, o sr. tem demonstrado muita preocupação
com o direito autoral, diante das novas tecnologias. O que o Minc pode fazer a
respeito disso?
J-Nós estamos preparando novas políticas para as artes.
Vamos falar sobre a música, onde houve uma desorganização da indústria
fonográfica, pelo desenvolvimento das novas tecnologias e facilidade de
reprodução. A internet praticamente detonou a economia da música. Hoje, há uma
aparência de que a música popular brasileira está em crise, mas essa imagem é
falsa. Nunca se produziu tanto música de qualidade no Brasil – e no Brasil
inteiro.
Mas os artistas se mantêm?
Juca Ferreira – Esse é o problema. Alguns só. E que são
poucos. Os artistas estão sendo lesados pelas grandes corporações que atuam na
internet, como o Google e YouTube, que não pagam direito autoral no Brasil.
E por que não pagam?
Juca Ferreira – Dizem que não existe legislação. Essas
empresas ganham trilhões e não pagam nada. Nunca foi tão fácil medir a
audiência, como na era da internet. Então é perfeitamente possível criar
mecanismos para obrigá-las a remunerar os artistas. O problema é que essas
empresas pairam nas nuvens, acima dos estados nacionais.
O que pode ser feito?
Juca Ferreira – O Marco Civil da Internet foi o primeiro
passo. Agora, o Ministério da Cultura vai liderar um esforço, debatido com
artistas e produtores culturais, para formatar uma legislação que obrigue o
pagamento. Tem que ser assim: tocou, pagou.
O órgão arrecadador será o Ecad?
Juca Ferreira – Não, a lei não protege o Ecad e os artistas
não querem o mesmo modelo na internet. Deve ser criada uma nova instituição
arrecadadora. Hoje, os artistas não ganham porque essas empresas, como Google,
Facebook e Youtube, se relacionam apenas com o tribunal da Califórnia. Isso
precisa mudar. E às vezes acontecem coisas inacreditáveis, como quando o
Facebook censurou uma foto de uma índia, de 1904, que havia sido retirada da
página do Minc. Foi aí que eu soube que eles só se relacionam com a justiça
americana.
Como obrigar as empresas supranacionais a seguir uma lei
nacional do direito autoral?
Juca Ferreira – Nós iremos aos foros internacionais, porque
essa ação necessita de uma articulação global para que dê certo. Todos os
países europeus já estão enfrentando o Google. Ou seja: há uma reação.
Mas os europeus se movem mais na defesa do direito autoral
dos jornais, e não dos artistas.
JOs jornais são mais fortes que os artistas, têm mais
advogados, mas já há uma reação em defesa dos artistas. Não se pode permitir
que essas empresas vampirizem os conteúdos e ganhem bilhões. Hoje, o maior
desequilíbrio da balança comercial brasileira, em termos proporcionais, diz
respeito ao direito autoral. Nós pagamos todos os direitos autorais em relação
ao que vem de fora e não recebemos quase nada. Não há possibilidade de mover a
indústria cultural brasileira se não formos capazes de regular a internet.
A política do vale-cultura começa a pegar entre empresas e
trabalhadores?
Juca Ferreira – Está funcionando. No início, o vale-refeição
teve dificuldade para ser implantado e hoje está disseminado. O vale-cultura
está naquela fase inicial, pela qual o vale-refeição passou também. As centrais
sindicais já estão propondo colocá-lo nos dissídios, muitos empresários já
aceitam, mas nesse período de certa dificuldade econômica, é natural que haja
um pouco de cautela. A primeira pesquisa feita sobre a nova classe média
revelou que eles não se sentem classe média porque não têm o mesmo acesso à
cultura.
Como diriam os Titãs, "a gente não quer só comida, quer
comida, diversão e arte"?
Juca Ferreira – Exatamente. Todos querem acesso a bens
culturais de qualidade. As pessoas querem crescer e se tornar cidadãos mais
complexos. Quem não quer um bônus que dê possibilidade de comprar CDs, livros,
entrar no teatro, no cinema? Esse é um benefício facilmente compreensível.
Por que o Ministério da Cultura pretende acabar com a Lei
Rouanet?
Juca Ferreira – A Lei Rouanet é o ovo da serpente neoliberal
no Brasil. O José Sarney, quando foi presidente, criou a Lei Sarney, que era
baseada na renúncia fiscal, mas não permitia 100% de dedução. Teve o mérito de
iniciar um processo de ampliação dos recursos para a cultura. Com ele, o
empresário tinha que pagar pelo menos 20% para associar sua marca. O Fernando
Collor veio e encomendou ao eminente diplomata Sergio Paulo Rouanet uma nova
lei. Com ele, surgiu essa renúncia de 100%. Ou seja, a lei que pretendia criar
um mecenato garantiu isenção total ao empresário. Ele não coloca nada e
fortalece a sua marca. Além disso, há um outro subsídio, que é o volume gasto
pelo Ministério para acompanhar esses processos da Lei Rouanet.
Qual é o impacto disso?
Juca Ferreira – A gente gasta cerca de R$ 300 milhões do ano
na análise dos pedidos e no acompanhamento das contas dos projetos já
aprovados. O governo não só renuncia fiscalmente, como gasta. O que acontece é
o seguinte: o Minc aprova, e os que conseguem as cartas de crédito saem para
captar. Mas só cerca de 20% conseguem captar. E quem são esses? Os que podem
dar retorno de imagem para as empresas. E como a lei é muito ampla, você acaba
patrocinando peça da Broadway, ou seja, os que menos precisam. Um dia
participei de um evento com diretores de bancos franceses no Brasil. Sabe que
me disseram? Que país generoso esse de vocês, que patrocina todos os nossos
eventos.
Mas por que é o ovo da serpente do neoliberalismo?
Juca Ferreira – Você pega um dinheiro público e permite que
os departamentos de marketing das empresas ditem a política cultural. Eles
investem no que pode dar retorno de imagem. Artista que pode ter repercussão na
pobreza não interessa. Artista de vanguarda, que está inovando e saindo do
gosto majoritário, não interessa. Artistas de estados onde o poder aquisitivo é
menor também não interessa. Há uma seleção natural, implícita no modelo, que se
confirma nas estatísticas.
O que mostram os números?
Dados alarmantes. Cerca de 90% do dinheiro fica no Sudeste.
Destes 90%, 10% em Minas e os outros 80% no Rio e em São Paulo. Desses 80%, 60%
ficam nas capitais. E nas capitais são sempre os mesmos que captam.
O sr. vai comprar esta briga?
A briga já está comprada. Uma vez fui ao Senado e um senador
do PSDB me questionou. Perguntei de que estado ele era e depois mostrei que sua
região recebia '0,00 alguma coisa' da Lei Rouanet.
O que será colocado no lugar?
JO que existe no mundo inteiro. Um fundo cultural, que
recebe este dinheiro, e o aplica seguindo critérios públicos. Ou seja: o
Ministério vai aprovar os projetos e também os patrocínios. É preciso lembrar
que os recursos da Lei Rouanet representam 80% dos gastos em cultura. Estamos
falando de um dinheiro público, aplicado com critérios privados. E isso,
obviamente, tem que mudar.
Qual é o volume anual?
Estamos falando de R$ 1,3 bilhão em renúncia fiscal.
Quem é que sustenta politicamente a Lei Rouanet?
Juca Ferreira – Os poucos que têm acesso, assim como os
institutos de grandes empresas. Vale lembrar, também, que, graças à Rouanet, as
empresas também reduzem seus investimentos próprios em marketing. Porque já
fazem marketing com dinheiro público, associando-se aos artistas. Lá atrás,
quando falamos pela primeira vez em mudar, o Gil falou uma coisa importante.
Disse que, como artista, se sentia privilegiado, porque nunca teve qualquer
projeto que enfrentasse dificuldade para captar. Mas afirmou que, como homem
público, não poderia defender a continuidade da lei.
Qual é a sua proposta?
A criação de um fundo nacional, com fundos setoriais, e que
tenha esses recursos garantidos no orçamento. A área econômica não gosta,
porque entra no cálculo do superávit. Mas estamos falando de recursos ínfimos,
e que geram negócios. O que eles fazem é uma hipocrisa contábil.
E as empresas? Como participam do financiamento cultural?
Se quiserem associar suas marcas, terão que investir, com
recursos próprios, 20% do total do projeto. Acaba a renúncia fiscal. Vamos
supor que isso crie uma má vontade e os empresários não invistam. Nesse caso,
não perderão nada. Como hoje não investem nada, vão continuar não investindo
nada. Zero menos zero é igual a zero. Se quiser ter exposição de marca, paga. É
uma lógica capitalista, clara e transparente.
Essa proposta vai para a rua quando?
Já passou pela Câmara, colocaram ali umas jabuticabas, mas a
minha expectativa é que o Senado as retire. Daqui pro fim do ano, a gente
consegue resolver essa questão.
Fonte: Brasil 247