5 de
Novembro de 2016
Desde que
ficou configurado o golpe no Brasil, muitos setores das esquerdas falam na
formação de uma Frente Ampla. Há uma vaga inspiração uruguaia, país em que as
forças políticas da centro-esquerda em diante conseguiram construir uma unidade
duradoura, a despeito de suas diferenças, e em que ocupam a presidência já por
três mandatos, com alguns ganhos notáveis, como a legalização do aborto (mas um
registro bem mais ambíguo em outras pautas).
A
conversa difusa sobre a Frente Ampla, que vemos em entrevistas de intelectuais,
em artigos de imprensa e nas redes sociais, até agora parece ter rendido muito
pouco, ou mesmo nada, em termos de articulação concreta. As eleições municipais
mostraram os partidos à esquerda perdidos em suas brigas internas, mais preocupados
em acusar uns aos outros pela ausência de unidade do que em construir as
condições de uma ação em comum. Diante do desastre absoluto que as urnas
trouxeram, petistas encontraram consolo nas derrotas dos psolistas e
vice-versa. De maneira geral, as lideranças da esquerda brasileira se mostram
muito aquém do que nosso momento histórico exigiria. Ainda assim, é com elas
que temos que trabalhar, enquanto novas – espera-se – vão surgindo.
Talvez
nem fosse necessário dizer, porque o nome é autoexplicativo, mas a ideia da
Frente Ampla é congregar um conjunto de visões diferentes, num espectro
alargado, que comunguem de um programa básico. No momento, trata-se certamente
de um programa para retomar a vigência de instituições democráticas mínimas e
para estancar o retrocesso nos direitos individuais e coletivos. É, a meu ver,
um programa capaz de congregar diferentes matizes de socialistas, comunistas,
social-democratas, autonomistas, feministas, ecologistas. E de promover também
a adesão de liberais – quer dizer, liberais autênticos, preocupados com os
direitos e com as possibilidade de exercício da ação autônoma, não os
fascistoides ou neofeudais que hoje muitas vezes se escondem detrás de um
liberalismo de fachada.
Ficam de
fora aqueles que, por mais que também incorporem a expressão “Frente Ampla” em
seu discurso, continuam a exigir certificados de pureza e vetam a participação
de quem fez isso ou aquilo, se aliou com fulano ou beltrano ou, de maneira mais
geral, “conciliou” em algum lugar do passado. É o caso do PSTU, que já se
coloca mesmo à margem, mas também de certos grupos dos quais se pode dizer que
saíram do PSTU, mas o PSTU não saiu deles. Frente Ampla é festa estranha, com
gente esquisita, logo não serve para quem é demasiado seletivo. Se a ideia é juntar,
digamos, dos trotskistas a Claudio Lembo, certamente vamos encontrar alguns
espécimes que não são da nossa preferência – o que, como diria o hoje esquecido
sábio Kleber Bambam, “faz parte”.
Mas
também ficam de fora, certamente, aqueles que fingem não entender que a
formação de uma Frente Ampla é a demarcação de uma linha divisória – no caso,
entre quem apoia e quem não apoia o golpe e seus desdobramentos. Há quem fale
em Frente Ampla para se cacifar nas velhas negociações de sempre com os
partidos da direita, jogando o jogo da barganha política como se não tivéssemos
sofrido a ruptura que sofremos em nossa democracia. Para, quem sabe, conseguir
mais cargos na mesa diretora presidida por Rodrigo Maia. São aqueles que não
enxergam outro mundo além da política tradicional, às vezes simples
oportunistas, às vezes viciados pelos anos de acomodação aparentemente exitosa
(só que não).
A
primeira exclusão é necessária para que não cheguemos à verdadeira contradição
em termos que seria uma Frente Ampla, porém restrita. A segunda, para que a
confluência de forças com a plataforma mínima comum de combate ao retrocesso
político e social não acabe por contribuir para uma conformação ao regime que
se instala. Ainda assim, é possível esperar que se direcionem para a Frente
parcelas significativas do PSOL, do PT e de outros partidos da esquerda e da
centro-esquerda, na medida em que suas lideranças tenham maior clareza dos
desafios do momento.
Mas uma
Frente Ampla no Brasil de hoje não pode ser pensada apenas ou mesmo prioritariamente
em termos de partidos. Deve ser capaz de agregar uma multiplicidade de
organizações e movimentos populares, que formam a base sem a qual nenhuma
resistência à nova ordem é possível. A Frente Ampla deve ser um instrumento
para coordenar as ações destes movimentos e dotá-los de uma pauta unificada
mínima – não absorvendo-os, mas dialogando com eles, o que implica ser capaz de
produzir uma relação mais horizontal entre partidos e movimentos, na contramão
do aparelhamento que é a marca de muito da prática das organizações de
esquerda. A ideia de uma pauta unificada mínima, porém, indica a
necessidade de estabelecer um projeto com alguma densidade, compreendendo que a
fragmentação reivindicatória atual, que pode ser uma demonstração da vitalidade
das energias contra-hegemônicas, torna-se um ponto fraco quando não há uma
plataforma que as articule.
O
protagonismo concedido aos movimentos decorre da constatação de que não é
possível pensar que essa Frente terá como principal objetivo disputar eleições
– um instrumento cuja efetividade foi conspurcada pelo golpe e que, mesmo
antes, sempre representou um terreno de luta particularmente adverso. A
resistência que vier das ruas há de se espelhar nas urnas – mas nessa fórmula,
o polo dinâmico, que imprime a direção, está sempre nas ruas.
(5 de
novembro de 2016.)
Fonte:
Brasil 247
Link: http://www.brasil247.com/pt/colunistas/luisfelipemiguel/264042/Frente-Ampla-quem-como-por-qu%C3%AA.htm