Artigo de Gaudêncio
Frigotto[1]
Ao longo da década de 1980, nas
disputas em torno da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), um dos temas mais
debatidos foi o da educação básica como um direito social e subjetivo. Trata-se
de um pré-requisito à possibilidade da conquista da dupla cidadania para as
gerações de jovens que se sucedem.
A cidadania política que se expressa
pela crescente inserção e participação ativa na vida social e cultural e que
pressupõe fundamentos éticos, sociológicos, econômicos e culturais. A cidadania econômica, relacionada à política,
se expressa pelo preparo do jovem na sua inserção no mundo do trabalho e a sua
paulatina autonomia financeira quando atinge a vida adulta. Aliados aos
fundamentos acima, a inserção no trabalho implica o domínio das bases
científicas e técnicas que operam nos processos produtivos das várias
atividades econômicas. Para que seja uma formação básica, demanda a integração
destas duas dimensões. Antônio Gramsci definia esta dupla função da escola
unitária como o domínio de como funciona a sociedade dos homens e o mundo dos
processos naturais, físicos, químicos, biológicos etc.
Nas sociedades onde se efetivou a forma
clássica das revoluções burguesas, mesmo que de forma dual por ser o
capitalismo uma sociedade de classes desiguais, os jovens tiveram direito a
esta base. Os reflexos na vida social, cultural, político-jurídica e econômica
desta base mais universal dada às gerações de jovens que se sucederam foram e
são inequívocos.
O Brasil, por diferentes razões, até o
presente, nega esta base de educação, a 90% de seus jovens. Nossa história foi
marcada por dois estigmas que forjaram uma das classes burguesas mais violentas
e que produziram e produzem uma das sociedades mais desiguais do mundo: o
estigma da colonização e da escravidão. Diferente das burguesias clássicas que
se empenharam em construir a nação e efetivaram reformas de base, a burguesia
brasileira sempre rifou a nação associando-se de forma subordinada aos centros
hegemônicos do sistema capitalista, buscando o interesse próprio.
O resultado histórico é o oposto das
revoluções burguesas clássicas que, mesmo sendo sociedades capitalistas,
fizeram reformas de base e uma melhor repartição da riqueza e da renda e,
consequentemente, menos desigualdade e acesso ao direito à educação, saúde,
cultura etc. No Brasil, as reformas de base – agrária, tributária, política,
jurídica – sempre foram proteladas e quando disputadas armaram-se golpes e
ditaduras, com a ideia que isto seria a implantação do comunismo. Constitui-se uma sociedade ímpar que, como
mostra o sociólogo Francisco de Oliveira,
produz a miséria e se alimenta dela. Uma sociedade desigualitária sem remissão
(Oliveira, 2003, p. 150)[2]
O ensino médio, como educação básica de fato, como
possibilidade de construção de dupla cidadania, não é parte econômica, política
e cultural deste projeto societário. O estigma colonizador e escravocrata da
classe dominante cultiva uma visão fragmentária, adestradora de educação básica
para os filhos da classe trabalhadora. As denominações de ensino secundário, de
segundo grau e, atualmente, ensino médio têm por trás as várias reformas e
reforma das reformas.
A definição na atual LDB do ensino médio
como a etapa final da educação básica abriu o espaço para a disputa da escola
unitária, em contraste à dualidade e da educação politécnica como, todavia, em
particular ao longo dos oito anos de governo de Fernando Henrique contraponto à
visão adestradora e fragmentária da formação humana. Na década de 1990, Cardoso e de seu Ministro
da Educação Paulo Renato de Souza, sob o ideário neoliberal, reintroduziu-se a
dualidade mediante o Decreto 2.208\96.
Estabelece-se uma dicotomia entre formação geral e específica, formação
técnica e política.
Nos primeiros anos do governo Luiz Inácio Lula da
Silva, conseguiu-se revogar o Decreto 2208\96, substituindo-o pelo Decreto
5.154\2004 que possibilita o ensino médio integrado, tendo como base a ciência,
o trabalho e a cultura. Uma meia
conquista, pois não sendo obrigatório o retorno ao ensino médio integrado
efetivamente dependia do empenho político do governo, da adesão dos estados da
federação e da pressão das forças sociais, que ao longo das décadas de 1980 e
1990, lutaram pela escola unitária e a formação politécnica. O governo não apenas
não se empenhou como, por suas opções de alianças, fragmentou e dispersou o
campo da esquerda. A maioria dos Estados, por razões políticas e\ou
financeiras, não mostrou interesse pelo Integrado.
O campo ficou aberto para que as forças dos grandes
grupos empresariais dos setores industrial, financeiro, agrícola e das
corporações da mídia se organizassem ao redor do slogan cínico de Todos pela
Educação. Mediante seus institutos privados e quadros de intelectuais, foram tomando
e orientando, por dentro do Estado, em todos os níveis (federal, estadual e
municipal), no conteúdo, no método e na forma, a educação, especialmente a básica,
que convém ao mercado.
O
projeto de reformulação curricular do ensino médio elaborado pelos
representantes, no Congresso Nacional, das forças conservadoras do Todos pela
Educação, e que conta com o apoio explícito do atual Ministro da Educação, é
uma afronta à LDB e a liquidação do ensino médio, como educação básica. Com efeito, ao fragmentar o ensino médio, com
argumentos do senso comum, em diferentes e excludentes percursos, de acordo com
grandes áreas do conhecimento, separa o que é unitário, ainda que diverso – mundo
dos homens e da natureza - e retrocede anacronicamente ao que era este nível de
ensino antes da Lei nº 1.821 de março de 1953, que define o regime de
equivalência entre os diversos cursos de grau médio.
Um retrocesso que agride e mutila tanto o
direito à construção da emancipação e autonomia política e humana, quanto a
preparação para o mundo da produção das próximas gerações. Isto resulta da
estreiteza humana, miopia social, política e cultural da classe dominante
brasileira.
O tempo presente nos interpela para que, como educadores,
professores, militantes de movimentos sociais e populares e do sindicalismo
combativo, assumamos na unidade possível, mas muito além da presente, uma dupla
tarefa: a de lutar sem tréguas para transformar o monstrengo social que mutila
a vida da maioria dos brasileiros e que interdita o futuro de milhões de jovens
de seus direitos elementares; e a de construir
uma agenda coletiva de embate para manter o ensino médio, efetivamente, como
educação básica e com condições objetivas para o trabalho docente e demais
trabalhadores da educação.
[1] .
Doutor em educação e professor do programa de Pós Graduação em Políticas Púbicas
e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[2]. Para um entendimento aprofundado de
nossa especificidade histórica ver: OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista.. O ornitorrinco.
São Paulo, Boitempo, 2003
*Publicado no Jornal do Professor, janeiro/fevereiro de 2015, página 2 - Sinpro-Rio
*Publicado no Jornal do Professor, janeiro/fevereiro de 2015, página 2 - Sinpro-Rio
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