Por Gilberto Bercovici
CONJUR
A crise em que foi envolvida a
Petrobras tem gerado inúmeros debates e propostas, alguns bem intencionados ou
oportunos. Outros, nem tanto. Como se trata de um setor que abrange cerca de
10% do PIB do Brasil e envolve uma série de decisões políticas cruciais para o
nosso futuro, não faltam temas que necessitam de um exame mais detido. Um deles
se refere ao debate no Senado Federal do Projeto de Lei do Senado (PLS)
131/2015, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), que propõe a retirada a
Petrobras da condição de operadora única da exploração das jazidas do pré-sal.
As reservas de petróleo e gás
natural situadas na camada do pré-sal, ou seja, abaixo da camada de sal do
subsolo da plataforma continental, foram anunciadas em 2006. As descobertas
iniciais dizem respeito a jazidas situadas a cerca 300 quilômetros da costa,
entre o Espírito Santo e Santa Catarina. A localização das reservas está abaixo
de cerca de 2 mil metros de água e de uma camada de 5 mil metros de rochas e
sal. As pesquisas geológicas podem ampliar estas descobertas, além de confirmar
se seriam várias jazidas ou um único bloco. As estimativas falam em um
potencial de mais de 70 bilhões de barris de petróleo, de boa qualidade (em
princípio, trata-se de óleo leve), o que tornaria o Brasil um dos principais
produtores do mundo. Para tanto, são necessários vultosos investimentos, que
seriam compensados pela provável produtividade dos poços (estimada em 20 mil
barris/dia), a depender dos preços do petróleo no mercado internacional.
A partir da descoberta do
pré-sal, a mesma argumentação utilizada durante a "Campanha do
Petróleo", na década de 1950, foi acionada novamente contra a proposta de
garantir uma maior presença do Estado no setor petrolífero. Os críticos da
proposta encaminhada de mudança de modelo exploratório alegaram que a Emenda
Constitucional nº 9, de 1995, teria instaurado o regime de livre competição no
setor petrolífero. Para estes autores, a ideologia adotada pela Constituição de
1988 para o petróleo teria por objetivo a adoção da “regulação para a
concorrência”, isto é, a regulação da atividade monopolizada deveria ser
efetuada de modo a introduzir a concorrência no setor. Ou seja, a abertura do
setor petrolífero seria uma “exigência constitucional”. Logicamente, esta
“regulação para a concorrência”, que seria justificada pela globalização e
pelos “benefícios trazidos à sociedade” (quaisquer que sejam estes), deveria,
como todos os setores entregues à iniciativa privada no Brasil, proporcionar
incentivos fiscais e vasto financiamento público para os agentes econômicos
privados. O curioso é exigir concorrência em um setor que é monopolizado
constitucionalmente pelo Estado.
A Emenda Constitucional 9/1995
deu à União a opção de escolher entre a manutenção do sistema de atuação
estatal direta ou a adoção de outro sistema, com a possibilidade de contratação
de empresas estatais e privadas. A União, portanto, pode atuar diretamente no
setor do petróleo, por meio de empresa estatal sob o seu controle acionário. O
monopólio estatal no exercício das atividades no setor petrolífero foi extinto,
mas não o monopólio estatal destas atividades. O regime jurídico-constitucional
do petróleo é um caso típico de exercício do monopólio estatal com “quebra de
reserva”, por meio de concessões a particulares. A União é quem tem a
competência constitucional de decidir quem pode exercer as atividades
econômicas no setor de petróleo e gás natural, ou seja, apesar dos intérpretes
apressados ou interessados, todas as atividades do setor petrolífero, com a única
exceção da distribuição de combustíveis e derivados, continuam sendo monopólio
estatal no Brasil.
A descoberta do pré-sal
propiciou, inclusive, uma revisão no modelo de exploração petrolífera no
Brasil, até então regulado pela Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, que prevê o
modelo de contrato de concessão, um modelo completamente ultrapassado, sobre o
qual tratarei em uma próxima coluna. O modelo introduzido foi o dos contratos
de partilha de produção, que garantem a propriedade estatal sobre os produtos petrolíferos
antes de serem comercializados. São os contratos mais utilizados pelos Estados
produtores de petróleo em todo o mundo. O primeiro contrato deste tipo foi
firmado na Indonésia, em 1966. Os riscos pelo investimento e desenvolvimento da
produção são das empresas contratadas. Após o início da produção, as empresas
podem recuperar seus gastos e custos de operação de uma parcela denominada
"cost oil". A parcela remanescente, o "profit oil", é
dividido entre a empresa e o governo, na proporção acertada no contrato. O
Estado mantém total domínio sobre a propriedade dos recursos minerais, sobre os
equipamentos e instalações e sobre o gerenciamento das operações de produção de
petróleo. Neste tipo de contrato, os direitos reais sobre o petróleo não saem nunca
do domínio do Estado. Este modelo foi introduzido no Brasil por meio da Lei
12.351, de 22 de dezembro de 2010.
O modelo de partilha de produção
é muito mais apropriado para a exploração do petróleo por concessionários ou
contratados, cuja proposta é considerada mais vantajosa de acordo com o
critério da oferta de maior excedente em óleo para a União, ou seja, da parcela
da produção a ser repartida entre a União e o contratado, cujo percentual
mínimo é proposto pelo Ministério das Minas e Energia ao Conselho Nacional de
Política Energética (artigos 2º, III, 10, III, 'b' e 18 da Lei 12.351/2010).
A propriedade do petróleo e do
gás natural não é atribuída, de forma inconstitucional, ao contratado, como no
contrato de concessão. O petróleo e o gás natural continuam sob o domínio da
União, como determinam os artigos 20, IX e 177 da Constituição. O contratado
assume todos os riscos (artigos 2º, I, 5º, 6º e 29, II e X da Lei 12.351/2010)
e é remunerado por suas atividades (o "custo em óleo" do artigo 2º,
II da Lei 12.351/2010). O prazo de vigência do contrato é limitado a 35 anos
(artigo 29, XIX da Lei 12.351/2010)
O Ministério das Minas e Energia
readquiriu o controle sobre o planejamento do setor de petróleo e gás natural
(artigo 10, I da Lei 12.351/2010) e passou a celebrar os contratos em nome da
União, cuja gestão cabe à empresa pública Empresa Brasileira de Administração
de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. - PPSA (artigo 8º da Lei
12.351/2010). A PPSA é, também, integrante obrigatória de todos os consórcios
de exploração, seja com a Petrobras isoladamente seja em conjunto com a
Petrobras e outros licitantes (artigos 19, 20, caput e 21 da Lei 12.351/2010) e
deve indicar metade dos integrantes do comitê operacional (artigo 23, parágrafo
único da Lei 12.351/2010), responsável pela administração do consórcio (artigos
22 e 24 da Lei 12.351/2010), inclusive seu presidente, que tem poder de veto e
voto de qualidade (artigo 25 da Lei 12.351/2010).
A Petrobras é a operadora de
todos os blocos contratados sob o regime de partilha de produção, com
participação mínima assegurada de 30% nos consórcios de exploração, podendo ser
esta participação mínima ser ampliada a partir de proposta do Ministério das
Minas e Energia ao Conselho Nacional de Política Energética (artigos 4º, 10,
III, 'c', 19, 20 e 30 da Lei 12.351/2010). A União, também pode contratar a
estatal diretamente, sem licitação, para realizar estudos exploratórios (artigo
7º, parágrafo único da Lei 12.351/2010) ou para explorar e produzir em casos em
que seja necessário preservar o interesse nacional e o atendimento dos
objetivos da política energética (artigos 8º, I e 12 da Lei 12.351/2010). A
previsão da Petrobras como operadora única não é nenhuma inovação brasileira na
legislação petrolífera. Este tipo de previsão existe em vários regimes de
exploração petrolífera, na maior parte das regiões produtoras do mundo, da
Indonésia à Noruega.
A comercialização do petróleo,
gás natural e outros hidrocarbonetos destinados à União será realizada pelas
normas de direito privado, sem licitação, de acordo com as diretrizes definidas
pelo Conselho Nacional de Política Energética (artigos 9º, VI e VII e 45, caput
da Lei 12.351/2010). A PPSA é a representante da União para a comercialização
destes bens e pode contratar diretamente a Petrobras, dispensada a licitação,
como agente comercializador do petróleo, gás natural e hidrocarbonetos da União
(artigo 45, parágrafo único da Lei 12.351/2010).
O PLS 131/2015, do Senador José
Serra, visa justamente retirar da Petrobras a condição de operadora única do
pré-sal, sob a justificativa da alegada crise financeira pela qual estaria
passando a estatal. Ou seja, uma eventual conjuntura desfavorável fundamenta
uma medida que poderá comprometer toda a política nacional de petróleo e o
controle público sobre a exploração de um bem estratégico. Essa proposta
inverte totalmente a lógica de atuação de qualquer Estado em relação ao
petróleo.
A garantia da Petrobras como
operadora única do pré-sal faz com que o ritmo de investimento e de produção de
todos os projetos do pré-sal, bem como a decisão sobre eventuais associações e
com quem se associar, permaneçam nas mãos da União. Isso para não mencionar as
funções de controle sobre o impacto ambiental e apuração correta da vazão e da
quantidade de petróleo extraída, todas exercidas pela Petrobras.
Sem a Petrobras como operadora
única do pré-sal também se torna inviável estimular a indústria nacional, por
meio das políticas de conteúdo nacional. Políticas estas que geram empregos
aqui no Brasil e estimulam o desenvolvimento de nossa capacidade industrial. A
política de incentivo à inovação tecnológica, que gerou toda a vanguarda da
Petrobras na exploração de petróleo em águas profundas fica também prejudicada
se a estatal deixar de ser a operadora única do pré-sal.
A Petrobras descobriu as jazidas
do pré-sal a partir de suas próprias pesquisas e com a utilização de sua
própria tecnologia de exploração em águas profundas, sem nenhuma colaboração ou
auxílio externo. E as jazidas do pré-sal apresentam risco exploratório próximo
de zero, ou seja, praticamente não há possibilidade de se furar um poço e não
encontrar petróleo. Nenhuma empresa petrolífera do mundo, estatal ou não,
abriria mão dessas reservas. Não há sentido algum em determinar que a Petrobras
perca o controle sobre as jazidas que ela própria descobriu e desenvolveu
tecnologia própria para explorá-las, em nome do Estado brasileiro.
O resultado da aprovação do
Projeto de Lei do Senado 131/2015 seria a perda do controle nacional sobre as
reservas petrolíferas e sua exploração ditada a partir dos interesses privados
das grandes petroleiras internacionais. Que país do mundo seria capaz de abrir mão
do controle sobre esses recursos? Certamente nenhum. Não existe razão alguma
que justifique que o Brasil deva permitir a dilapidação de toda essa riqueza
estratégica fundamental para o futuro do país.
Fonte: CONJUR
Link: http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/estado-economia-nao-qualquer-razao-abrir-mao-controle-petrobras#author