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Atualizado em 27 de dezembro de 2023 às 11:21
Dedicado a Manuel
Domingos, Pedro Celestino e André Castro
Li com
perplexidade e indignação a entrevista ao Globo do governador do estado do Rio,
Claudio Castro, publicada em 16 de dezembro de 2023: “Estamos pegando menores
que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando
para que a gente faça a pesquisa social deles. Não há nada de mais nisso, não
há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu
responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.”
A quem se dirige
a ordem do governador, a qual condiciona o acesso à praia de menores de 18 anos
à apresentação de documentos e à presença de responsáveis? A frase é muito
clara: dirige-se a todos que desejem ir à praia. Entretanto, nenhuma informação
suplementa a ordem. Claudio Castro não diz, e estranhamente o repórter não
pergunta, como agentes do Estado montarão guarda nos calçadões para verificar
documentos e atestar a presença de responsáveis, os quais, por sua vez, seriam
identificados a partir de quais critérios? Todo o efetivo da PM seria
mobilizado? Muros seriam erguidos com catracas e guichês? A medida seria
aplicável a todas as praias fluminenses? Quantos recursos materiais, humanos e
financeiros seriam investidos? Quais bases legais sustentariam a iniciativa? As
prefeituras das cidades envolvidas haviam sido consultadas? Disponibilizariam
guardas municipais e outros funcionários públicos para viabilizar o controle
previsto na ordem do governador? Quais, exatamente, as faixas etárias
alcançadas pela ordem restritiva? A questão em pauta é, realmente, o acesso à
praia ou se estende aos bairros contíguos ao litoral? Jovens podem visitar
livremente esses bairros? Quaisquer bairros? Ou haveria também condicionantes
restritivos à circulação que não envolvesse as praias?
Não, nada disso:
o que a estrutura lógica e gramatical da frase indica no plano semântico (a
ordem é universal, dirigida aquemreside no estado do Rio) inverte-se no
subtexto (a ordem se dirige a alguns e algumas, não elencados, explicitamente,
mas subentendidos -não há dúvidas sobre quem são). Por outro lado, o acesso em
tela de juízo não corresponde à chegada à praia, mas ao deslocamento cujo
destino seja a praia -deslocamento que seria interceptado na origem ou em algum
ponto do itinerário. Acesso pode ser concebido como um bem (a ser potencialmente
usufruído -sendo comum, o benefício individual não reduz seu potencial de
fruição), um direito (a ser exercido), uma possibilidade (física, material,
desde que haja cidadãos e o bem deque trata o acesso, no caso, a praia) ou um
ato (estar na praia, aproveitar o que ela oferece, o que pressupõe tê-la
alcançado, ter chegado a ela) e um fato (a praia ocupada).
As ações
policiais que constituem a referência implícita da declaração de Castro ocorrem
no trajeto dos ônibus que transportam para a Zona Sul, nos fins de semana,
moradores das áreas mais pobres da cidade e da região metropolitana. É nessas
abordagens policiais que a triagem se faz. Os escolhidos são recolhidos a
abrigos onde aguardam averiguações até o anoitecer -digo escolhidos porque não
caberia aqui a categoria suspeitos, pois sequer há crimes em marcha, em
preparação, ou indícios de organização para seu cometimento–e ainda não
contamos com a antecipação paranormal dos investigadores de Minority report-o
filme de Steven Spielberg, inspirado no conto de Philip K. Dick. Percebam: ao
anoitecer, usualmente, esgota-se o prazo de validade da praia como espaço de
diversão. Portanto, Castro reconhece que a pena -sim, pena sem crime, sem
acusação-aplicada aos jovens antecede e independe do resultado das tais “pesquisas
sociais”. Voltemos à sua declaração: “Estamos pegando menores que estão
desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a
gente faça a pesquisa social deles.”
A frase do
governador é maliciosamente elíptica, sob a forma do discurso universal: em
primeiro lugar, sob aparência de uma relação diádica (emissor, o governador, e
receptor, a audiência universal pela mediação do repórter e, portando, do
jornal), estipula, na prática, uma relação triangular, ao operar uma distinção
entre dois tipos de receptores: aqueles a quem realmente a ordem é dirigida e
os demais, não visados pelas restrições, que apenas testemunham o ato de fala
governamental e cujo silêncio obsequioso (o repórter cala as interrogações
cruciais) confirma, simbolicamente, a legitimidade e a autoridade do comunicado
emitido. Observe como a ironia mal dissimulada mascara a duplicação dos tipos
de receptores: “Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável,
você vai poder curtir a praia numa boa.” Você remete a quem jamais se exigirá
documentos ou o acompanhamento de responsáveis e, simultaneamente, a quem será
alvo da exigência. A superposição mal disfarça o facciosismo e o enviesamento
da ordem do governador sob a evocação do interlocutor universal.
Em segundo lugar,
o discurso é inquietantemente elíptico e dissimulado. Cito, novamente: “Estamos
pegando menores (…) e levando(…) Não há nada de mais nisso, não há cerceamento
na praia.”Não, nenhum cerceamento na praia, de fato. Na praia temos atos (modalidades
ativas do estar naquele local) e fatos (a ocupação da praia) tautologicamente
comprobatórios da presença, presença que é o avesso da exclusão. Sendo assim, o
acesso como um bem nãofoi negado, enquanto fato, ato ou possibilidade (uma vez
que quem não estivesse na praia poderia, em princípio, lá estar -ninguém, em
princípio, estaria impedido de exibir documentos e fazer-se acompanhar de
responsável -e o caráter discriminatório da aplicação das exigências não
macularia a afirmação do acesso como possibilidade universal). Daí se deduziria
que o direito fora preservado, o acesso como direito permaneceria respeitado,
protegido, tutelado, garantido. O pulo do gato violador está justamente na
confusão intencional e ardilosa entre acesso como direito abstrato
(correspondente ao não cancelamento da possibilidade de fruir) e direito
objetivo (correspondente à sustentação da equidade na distribuição das
condições efetivas de experimentar a possibilidade).
Ninguém, no
Brasil, está impedido, em princípio, de beneficiar-se da educação pública, ou
seja, o acesso à educação, do primeiro ao terceiro graus, é possível -e esta
possibilidade é um bem precioso tutelado pelas autoridades responsáveis (do MP
ao Executivo, passando pela Defensoria e a Justiça). No entanto, há políticas
afirmativas, como as cotas, e elas foram consideradas constitucionais pela
Suprema Corte, em decisão unânime. Para que servem as cotas? Reduzir a
iniquidade que se verifica, concretamente, na distribuição das condições em que
os grupos sociais experimentam a possibilidade.
O governador do
Rio está introduzindo fatores que reduzem a equidade na distribuição das
condições efetivas de vivenciar a possibilidade. Sua decisão confronta
princípio axial da Constituição, a equidade no acesso a bem público -ele criou
a anti-cota ou a cota para a exclusão. Trata-se de um experimento perverso na
linha do apartheid, comaspectos sociais e raciais.
Confesso que as
palavras do governador produziram em mim um efeito devastador: se não há mais
nenhum limite, nenhum pudor, se o cinismo pode se expor sem pejo, se a
racionalidade não é mais parâmetro para argumentos, se o discurso da autoridade
máxima do Executivo pode sacrificar qualquer compromisso com o respeito à
inteligência dos interlocutores, o que esperar dos cidadãos que o escutam? O
pacto que estabelece as condições mínimas para o diálogo no espaço público
democrático estava rompido, unilateralmente. No vácuo, prosperam o negacionismo
e o niilismo, venenos corrosivos, armas de destruição em massa daquilo que, um
dia, com boas intenções (embora, idealistas), foi chamado senso comum: o
consenso mínimo indispensável àvida em comum, substrato que não impede as
diferenças, ao contrário, as torna possíveis e lhes dá sentido.
O governador
atirou no que viu e atingiu o que não viu: alvejou a crítica do MP às ações
policiais e implodiu os alicerces inter-subjetivos da linguagem e da cultura.
Castro declarou guerra (sem quartel e bandeiras, a guerra hobbesiana pela
subordinação do sentido à força, a guerra de todos contra todos) ao minar o
campo do mútuo entendimento, ao implodir o discurso como espaço público da
argumentaçãoracional. E, como disse Shakespeare: quando falta a linguagem,
prevalece a violência.
Minha
perplexidade se agravou ante o posicionamento do TJRJ.
LINK: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-democracia-brasileira-nao-vai-a-praia-por-luiz-eduardo-soares/
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