Por Cleomar Manhas
Como surgiram projetos que
ameaçam professores até com prisão. Por que sua proposta, contrária a
ideologias é primária, silenciadora de opiniões divergentes e, no fundo…
profundamente ideológica
O que seria a tão falada, e
pouco explicada “escola sem partido”? Basicamente, trata-se de uma falsa
dicotomia, pois não diz respeito à não partidarização das escolas, mas sim à
retirada do pensamento crítico, da problematização e da possibilidade de se
democratizar a escola, esse espaço de partilhas e aprendizados ainda tão
fechado, que precisa de abertura e diálogo.
A pauta que precisamos
debater é a da qualidade da educação, e não falácias ideológicas sobre a “não
ideologização da escola”, algo que se vê até mesmo em alguns diálogos sobre a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
O Plano Nacional de Educação
foi aprovado há dois anos. Durante sua tramitação, uma das polêmicas suscitadas
foi acerca da promoção das equidades de gênero, raça/etnia, regional,
orientação sexual, que acabou excluída do texto do projeto. Por consequência,
isso influenciou a tramitação dos planos estaduais e municipais, que também
sucumbiram ao lobby conservador e refutaram qualquer menção a gênero, por
exemplo, difundindo a falsa tese da aberração intitulada “ideologia de gênero”.
Isso causou uma confusão deliberada entre uma categoria teórica e uma pretensa
ideologia.
Marivete Gesser, do
Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional da Universidade Federal de
Santa Catarina, explica que “gênero pode ser caracterizado como uma construção
discursiva sobre nascer com um corpo com genitália masculina ou feminina” e,
por meio de normas sobre masculinidade e feminilidade, vamos nos construindo
como sujeitos “generificados”. O preconceito vem dos discursos que naturalizam
os lugares sociais de homens e mulheres como únicas representações, e segregam
qualquer outra forma de manifestação. Além disso, em pesquisa realizada por
estudantes do ensino médio em Brasília, feita no âmbito do projeto Educação de
Qualidade (Inesc/Unicef), constatamos que uma das razões do abandono escolar é
a discriminação relativa ao público LGBTI. Razões mais do que suficientes para
discutirmos gênero nas escolas.
Qual a ligação entre esses
dois temas, “escola sem partido” e “ideologia de gênero”, em momentos tão
distintos? O que parece ter diferentes motivações e origens resulta dos mesmos
elementos: os fundamentalismos conservadores que tentam passar às pessoas suas
ideologias e crenças. Afinal de contas, não são apenas os pensamentos marxistas
que são ideológicos, como tentam fazer crer os defensores da “escola sem
partido”. Sendo assim, o que significa ideologia então?
Um dos conceitos mais
difundidos é o de Karl Marx em parceria com Friedrich Engels, na obra a
Ideologia Alemã, em que afirmam ser a ideologia uma consciência falsa da
realidade, importante para que determinada classe social exerça poder sobre a
outra, bem como a necessidade de a classe dominante fazer com que a realidade
seja vista a partir de seu enfoque.
O conceito, no entanto,
sofreu inúmeras interpretações, como a de Lênin para a ideologia socialista,
como forma de definir o próprio marxismo. Portanto, há ideologia nas diferentes
formas de ver e conceber o mundo. Não existe neutralidade. Quando defendem a
“não ideologização”, em nome dessa pretensa neutralidade, também estão
impregnados de ideologia.
Os teóricos do projeto
“escola sem partido” advogam a neutralidade e se dizem não partidários. No
entanto, suas intenções são claras: a retroação dos avanços que tivemos nos
últimos tempos, especialmente com relação aos direitos humanos. Por exemplo,
quando dizem lutar contra a doutrinação, uma das situações apresentadas no site
do movimento da “escola sem partido” é um seminário realizado pela Comissão de
Educação da Câmara dos Deputados sobre direitos LGBTI e a política de educação.
Eles citam esse caso como uma afronta ao artigo 12 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, afirmando que pais e seus filhos têm que ter uma educação
moral de acordo com suas convicções. É uma deturpação do citado artigo, que diz
respeito à liberdade religiosa que deve ser respeitada individualmente. Além
disso, manipulam e fazem confusão deliberada com a discussão realizada no
seminário, que reafirmou a importância de se debater questões de gênero e de
sexualidade nas escolas, para que as diferenças não sejam transformadas em
desigualdades.
Em outro momento, dizem que
os alunos (a quem chamam de “vítimas”) acabam sofrendo de Síndrome de
Estocolmo, ligando-se emocionalmente a seus algozes (“professores
doutrinadores”). Nesse caso, os estudantes se recusariam a admitir que estão
sendo manipulados por seus professores e sairiam furiosos em suas defesas. Para
exemplificar, citam momentos identificados como “monstro totalitário arreganha
os dentes” e chamam os estudantes de soldadinhos da guarda vermelha.
Em um dos livros desse
movimento, é passada a noção de que o professor não é um educador, separando
assim o ato de ensinar (passar conteúdos) e educar. O/A professor(a) deveria
estar ali apenas para passar conteúdo sem crítica, problematização ou contextualização,
em um ato mecânico. Paulo Freire é demonizado como o grande doutrinador – justo
ele, que construiu uma obra toda para combater doutrinações.
Esse movimento da “escola
sem partido” nasceu em 2004 e não gerou muitas preocupações, porque parecia muito
absurdo e coisa pequena. No entanto, tem tomado corpo e crescido, na mesma
toada de movimentos fascistas tais como ‘revoltados online’, responsável por
apresentar recentemente a proposta da “escola sem partido” ao ministro da
Educação do governo ilegítimo. Aliás, é bom dizer que foi a primeira audiência
concedida pela pasta da Educação nesta gestão ilegítima. E em vídeo, os
criadores da “escola sem partido” e do “revoltados online’ explicam que criaram
tais coisas a partir de motivações pessoais. Ou seja, eles tentam impingir ao
país projeto com base em impressões e vivências individuais.
A proposta foi apresentada
em forma de projeto pela primeira vez no Estado do Rio de Janeiro, pelo
deputado Flávio Bolsonaro. A segunda vez foi no Município do Rio de Janeiro,
pelo vereador Carlos Bolsonaro – ambos filhos do deputado federal Jair
Bolsonaro. E tal proposta já se espalhou por diversas câmaras municipais e
assembleias legislativas. Em âmbito nacional, o deputado Izalci (PSDB/DF)
apresentou o PL 867/2015 à Câmara Federal, que altera a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Dentre várias questões, o artigo 3º do referido projeto diz
o seguinte: “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação
política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de
atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais
dos pais ou responsáveis pelos estudantes.” O que viola tais convicções
provavelmente será julgado de acordo com o que e com quem quiserem criminalizar.
O projeto ainda levanta uma polêmica do século XIX quando se discutia a
dicotomia família e escola, o que deveria estar superado no século XXI.
Há vários projetos
tramitando apensados a esse, ainda mais perversos. Um deles, do deputado
Victório Galli, do PSC/MT, proíbe a distribuição de livros didáticos que falem
de diversidade sexual. E há ainda o projeto de lei 1411/2015, do deputado
Rogério Marinho PSDB/RN, cujo relator é o mesmo deputado Izalci. Esse projeto
tipifica o crime de assédio ideológico, que, de acordo com o projeto,
significa: “toda prática que condicione o aluno a adotar determinado
posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de
constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso
do seu, independente de quem seja o agente.” E diz ainda que o professor,
orientador, coordenador que o praticar dentro do estabelecimento de ensino terá
a pena acrescida de um terço. Ou seja, as opiniões fora da escola, tais como
nas redes sociais, poderão penalizar o profissional da educação também.
O movimento criou
recentemente uma “associação escola sem partido” para ter uma entidade com a
qual pudesse recorrer à Justiça em casos que julgasse relevantes. E a primeira
ação por eles promovida foi contra o INEP, devido ao tema da redação do Enem de
2015, que tratava de violência contra as mulheres, tema que julgaram
doutrinador e partidário. A violência contra as mulheres é reconhecida como
grave problema em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (CEDAW), aprovada pela ONU em 1979, e outros que a seguiram. No
Brasil, a cada 4 minutos uma mulher dá entrada no SUS por ter sofrido violência
física, e 13 mulheres são assassinadas a cada dia – uma a cada 1 hora e 50
minutos. A violência está inclusive nas próprias escolas, como demonstrou a
iniciativa “Meu professor abusador”.
Há vários ovos de serpente
chocando no momento, em diversos locais, seja no âmbito dos legislativos
municipais, estaduais ou nacional, e mesmo nos Executivos, e não temos
garantias de que o Judiciário irá barrar tais aberrações. Portanto, nossa única
arma é a manifestação, a nossa presença nas ruas e a disseminação de
informações a um público maior possível, já que é na internet e em redes como
whatsapp que esses grupos têm angariado seguidores, muitos deles muito jovens.
É preciso promover debates que esclareçam essas situações que estão
amadurecendo na surdina, com pessoas que não nos representam, mas estão em
cadeiras que permitem tais movimentos.
Extraído de Outras Palavras
Link: http://outraspalavras.net/brasil/escola-sem-partido-escola-silenciada/