domingo, 1 de fevereiro de 2015

Reforma curricular do ensino médio: legalização da dualidade e liquidação do direito à educação básica



                                                            Artigo de   Gaudêncio Frigotto[1]

            Ao longo da década de 1980, nas disputas em torno da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), um dos temas mais debatidos foi o da educação básica como um direito social e subjetivo. Trata-se de um pré-requisito à possibilidade da conquista da dupla cidadania para as gerações de jovens que se sucedem.  
            A cidadania política que se expressa pela crescente inserção e participação ativa na vida social e cultural e que pressupõe fundamentos éticos, sociológicos, econômicos e culturais.  A cidadania econômica, relacionada à política, se expressa pelo preparo do jovem na sua inserção no mundo do trabalho e a sua paulatina autonomia financeira quando atinge a vida adulta. Aliados aos fundamentos acima, a inserção no trabalho implica o domínio das bases científicas e técnicas que operam nos processos produtivos das várias atividades econômicas. Para que seja uma formação básica, demanda a integração destas duas dimensões. Antônio Gramsci definia esta dupla função da escola unitária como o domínio de como funciona a sociedade dos homens e o mundo dos processos naturais, físicos, químicos, biológicos etc.
        Nas sociedades onde se efetivou a forma clássica das revoluções burguesas, mesmo que de forma dual por ser o capitalismo uma sociedade de classes desiguais, os jovens tiveram direito a esta base. Os reflexos na vida social, cultural, político-jurídica e econômica desta base mais universal dada às gerações de jovens que se sucederam foram e são inequívocos.
       O Brasil, por diferentes razões, até o presente, nega esta base de educação, a 90% de seus jovens. Nossa história foi marcada por dois estigmas que forjaram uma das classes burguesas mais violentas e que produziram e produzem uma das sociedades mais desiguais do mundo: o estigma da colonização e da escravidão. Diferente das burguesias clássicas que se empenharam em construir a nação e efetivaram reformas de base, a burguesia brasileira sempre rifou a nação associando-se de forma subordinada aos centros hegemônicos do sistema capitalista, buscando o interesse próprio.
         O resultado histórico é o oposto das revoluções burguesas clássicas que, mesmo sendo sociedades capitalistas, fizeram reformas de base e uma melhor repartição da riqueza e da renda e, consequentemente, menos desigualdade e acesso ao direito à educação, saúde, cultura etc. No Brasil, as reformas de base – agrária, tributária, política, jurídica – sempre foram proteladas e quando disputadas armaram-se golpes e ditaduras, com a ideia que isto seria a implantação do comunismo.  Constitui-se uma sociedade ímpar que, como mostra o sociólogo Francisco de Oliveira, produz a miséria e se alimenta dela. Uma sociedade desigualitária sem remissão (Oliveira, 2003, p. 150)[2]
O ensino médio, como educação básica de fato, como possibilidade de construção de dupla cidadania, não é parte econômica, política e cultural deste projeto societário. O estigma colonizador e escravocrata da classe dominante cultiva uma visão fragmentária, adestradora de educação básica para os filhos da classe trabalhadora. As denominações de ensino secundário, de segundo grau e, atualmente, ensino médio têm por trás as várias reformas e reforma das reformas.
 A definição na atual LDB do ensino médio como a etapa final da educação básica abriu o espaço para a disputa da escola unitária, em contraste à dualidade e da educação politécnica como, todavia, em particular ao longo dos oito anos de governo de Fernando Henrique contraponto à visão adestradora e fragmentária da formação humana.  Na década de 1990, Cardoso e de seu Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, sob o ideário neoliberal, reintroduziu-se a dualidade mediante o Decreto 2.208\96.  Estabelece-se uma dicotomia entre formação geral e específica, formação técnica e política.
Nos primeiros anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu-se revogar o Decreto 2208\96, substituindo-o pelo Decreto 5.154\2004 que possibilita o ensino médio integrado, tendo como base a ciência, o trabalho e a cultura.   Uma meia conquista, pois não sendo obrigatório o retorno ao ensino médio integrado efetivamente dependia do empenho político do governo, da adesão dos estados da federação e da pressão das forças sociais, que ao longo das décadas de 1980 e 1990, lutaram pela escola unitária e a formação politécnica. O governo não apenas não se empenhou como, por suas opções de alianças, fragmentou e dispersou o campo da esquerda. A maioria dos Estados, por razões políticas e\ou financeiras, não mostrou interesse pelo Integrado.  
  O campo ficou aberto para que as forças dos grandes grupos empresariais dos setores industrial, financeiro, agrícola e das corporações da mídia se organizassem ao redor do slogan cínico de Todos pela Educação. Mediante seus institutos privados e quadros de intelectuais, foram tomando e orientando, por dentro do Estado, em todos os níveis (federal, estadual e municipal), no conteúdo, no método e na forma, a educação, especialmente a básica, que convém ao mercado.  
            O projeto de reformulação curricular do ensino médio elaborado pelos representantes, no Congresso Nacional, das forças conservadoras do Todos pela Educação, e que conta com o apoio explícito do atual Ministro da Educação, é uma afronta à LDB e a liquidação do ensino médio, como educação básica.  Com efeito, ao fragmentar o ensino médio, com argumentos do senso comum, em diferentes e excludentes percursos, de acordo com grandes áreas do conhecimento, separa o que é unitário, ainda que diverso – mundo dos homens e da natureza - e retrocede anacronicamente ao que era este nível de ensino antes da Lei nº 1.821 de março de 1953, que define o regime de equivalência entre os diversos cursos de grau médio.


          Um retrocesso que agride e mutila tanto o direito à construção da emancipação e autonomia política e humana, quanto a preparação para o mundo da produção das próximas gerações. Isto resulta da estreiteza humana, miopia social, política e cultural da classe dominante brasileira.
O tempo presente nos interpela para que, como educadores, professores, militantes de movimentos sociais e populares e do sindicalismo combativo, assumamos na unidade possível, mas muito além da presente, uma dupla tarefa: a de lutar sem tréguas para transformar o monstrengo social que mutila a vida da maioria dos brasileiros e que interdita o futuro de milhões de jovens de seus direitos elementares;  e a de construir uma agenda coletiva de embate para manter o ensino médio, efetivamente, como educação básica e com condições objetivas para o trabalho docente e demais trabalhadores da educação.



[1] . Doutor em educação e professor do programa de Pós Graduação em Políticas Púbicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[2].  Para um entendimento aprofundado de nossa  especificidade histórica ver: OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista.. O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo,  2003

*Publicado no Jornal do Professor, janeiro/fevereiro de 2015, página 2 - Sinpro-Rio

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