domingo, 31 de maio de 2015

Maioridade penal: o que aprender com o Uruguai.



Cinquenta mil uruguaios vãos às ruas contra redução da maioridade em 18/10/14, às vésperas do plebiscito. Apoio ao encarceramento caiu de 75% para 47%, após campanha
Uma articuladora da luta contra a redução revela como criatividade, informação refinada e celebração da alegria espantaram medo e preconceito difundidos pela mídia

Entrevista de Veronica Silveira a Inês Castilho
Uruguai

Veronica Silveira é uruguaia, mas fala portunhol. De verdade: portunhol é seu idioma cotidiano. Ela explica que nasceu em Rivera, cidade do norte do Uruguai vizinha de Santana do Livramento, no extremo sul do Rio Grande do Sul. “É só atravessar uma rua e já é Brasil. E a música que se escuta, a tele, é tudo brasileiro. A língua cotidiana é o portunhol, só se fala espanhol em conversas formais.”
Pergunto sobre a personalidade do povo de fronteira – um extremo, território de passagem. Ela conta que Rivera vive mais a política brasileira que a de Montevidéu, e que se caracteriza pelo conservadorismo. “Rivera bota freio nos avanços do país.” Só mesmo a tradição familiar de militância política para explicar que ela tenha estado no centro do movimento político “No a La Baja” (“Não à Redução”), que deteve a redução da maioridade penal no seu país.
Veronica esteve no Brasil, de 27 a 29 de abril, participando de encontros e debates a convite da Fundação Rosa Luxemburgo. Transbordando entusiasmo, conta como defensores dos direitos humanos e uma grande diversidade de organizações venceram o plebiscito que, em 26 de outubro de 2014, junto às eleições presidenciais, perguntou à população se queria e
Com 27 anos, formada em Serviço Social na Universidad de La Republica – “excelente universidade pública e gratuita” –, Veronica vive há 10 anos em Montevidéu, onde se ligou à Casa Bertolt Brecht – centro de produção de cultura política critica, como a campanha que deteve a privatização da água – que abrigou a Comissão No a La Baja.
Cerca de 75% da população eram a favor da redução, no Uruguai – aqui são 87%. Como conseguiram reverter esse quadro?
Em 2011, Pedro Bordaberry, político do Partido Colorado e filho do homem que inaugurou a última ditadura no Uruguai, toma o tema da menoridade perigosa para fazer campanha política e propõe a coleta de assinaturas para um plebiscito. O tema não era novo, há registros sobre “jovens que não querem nada com a vida, vândalos” desde 1934. Mas, desde a última década havia aumentado o número de citações sobre delinquência de adolescentes. Embora não sejam significativos, a mídia tratou de ampliá-los.
O Uruguai tem uma população envelhecida – as mulheres geram cada vez menos filhos, e engravidam cada vez mais tarde. Assim, temos uma faixa de juventude reduzida, o que torna difícil participar politicamente e ter voz. A juventude participa e age, mas politicamente seguimos tendo pouco espaço. Desde 1994, com a privatização que varreu o continente e o endurecimento das leis, a população carcerária adulta superaumentou, vivendo em condições infraumanas. Em 2002 houve uma grande crise do país, e mais da metade das crianças nasciam em condições abaixo da linha de pobreza. Aquelas crianças são os adolescentes de hoje. Eles são filhos dessa crise, tinham então 2 ou 3 anos e nada o que comer.
Esses jovens em conflito com a lei são meninos e meninas?
Sempre mais meninos, não porque as meninas tivessem sido menos vitimadas pela crise, mas porque culturalmente são os meninos que delinquem, e também porque há um olhar policial voltado para isso. Provavelmente as meninas são hoje mães adolescentes dos meninos que estão delinquindo para comer ou consumir os produtos exubidos no mercado.
Entre 2000 e 2010, a população menor que delinquia aumentou 1%, apenas. De uma população adolescente total de aproximadamente 280 mil, cerca de mil garotos estavam em conflito com a lei, com medida privativa de liberdade ou não. Mas sucedeu que o sistema penitenciário, cheio de falhas, registrou muitas fugas nos centros de reclusão de menores – aconteceram mil em 2011. Também nesse período aconteceram delitos de grande violência cometidos por adolescentes, três assassinatos em dois meses. E a mídia, claro, fez com que a situação parecesse ainda mais grave.
Quando, em 2011, Bordaberry propõe recolher assinaturas para o plebiscito, havia na população um apoio de 75% ou 76% à redução. Em 2012, apesar de vários coletivos de defesa de direitos humanos e da juventude terem se reunido para dizer não, conseguiu-se o número de assinaturas necessário. Quem era favorável à redução da maioridade penal tinha elementos para defendê-la. Já quem era contrário não tinha argumentos que tocassem a sensibilidade daquelas pessoas que enxergavam a realidade só pelas notícias de televisão. Então se começou a campanha – não porque houvesse chance de ganhar, mas porque precisávamos nos posicionar, dar respostas, e, se a população fosse votar, que ao menos soubesse o que estava fazendo.
Como se formou a Comissão No a La Baja?
Em 2011 e 2012 nosso trabalho foi de construção do grupo de coletivos. Não revertemos nenhum percentual, nem trabalhamos com informação. Apenas nos debruçamos na construção da linha argumental, intelectual, acadêmica, com o público já convertido, fazendo debates e palestras para conseguir elementos capazes de convencer a população. E nesse período éramos só intelectuais, o movimento estudantil e muitas pessoas independentes.
Não foi imediatamente que os partidos, assim como os sindicatos – a PIT–CNT, central que reúne todos os sindicatos e portanto todos os trabalhadores, cerca 240 mil – assumiram a causa. Depois de 2011, já com as assinaturas necessárias para o plebiscito, foi que se incorporaram partidos políticos, e se pronunciaram muitas organizações, tais como as igrejas, os escoteiros, o movimento Teto para meu país e outras. Todos esses aportes fizeram com que a composição da Comissão ganhasse grande diversidade.
Nossa força foi termos nucleado todas essas organizações e pessoas numa mesma campanha. A organização era única e todos os participantes, individual e coletivamente, estávamos dentro da Comissão. Claro, somos 3 milhões, isso aqui seria muito difícil. Mas de outra forma não teríamos convencido ninguém.
Como foi a construção dos argumentos usados para convencer a população?
Nesses dois anos de trabalho interno coletando informações, conseguimos uma lista de argumentos muito longa – da área de direitos, da neurociência, sociológicos, da área jurídica e do sistema penal adolescente. Juntamos todos esses aportes e partimos para a batalha com uma frente única de razões que poderiam ser usadas com acadêmicos, vizinhos, quem quer que fosse.
Contudo, esses dois anos de construção da linha de argumentação, por si só, não teriam sido suficientes. Era necessário falar sobre isso de tal forma que incluísse todo mundo. Como estratégia de comunicação usamos não só palestras de todo tipo, mas shows na rua, marchas cheias de alegria e cores, debates na vizinhança. A ideia era tirar a sensação de medo, ir aos bairros que seriam os mais atingidos, mas onde a maioria se posicionava a favor porque só se informava pela mídia. Usamos o Teatro Legislativo, junto com o Teatro do Oprimido, ambos de Augusto Boal. Foi uma grande experiência! Estivemos nas capitais e grandes cidades de 10 dos 19 departamentos [estados] do país, em atos nos quais a população participou não só como espectadora. Uma pessoa do público era convidada a atuar, e todos podiam fazer propostas sobre a questão da minoridade infratora – desde recreação para jovens até mudanças no sistema penal adolescente. Essas propostas depois eram lidas e o público respondia mostrando um cartão verde, de apoio; vermelho, de rejeição; ou amarelo, de abstenção. Foi um exercício maravilhoso de apropriação da política e de criação de soluções. Não atingiu muita gente, porque nossos recursos eram limitados, mas foi muito importante. Além de compilar as propostas – que serão entregues este ano no parlamento –, a gente aproveitava as idas ao interior do país para criar novos núcleos da frente No a La Baja. Depois se trabalhou mais para territorializar a luta.
Como foram recebidos?
O problema da delinquência de jovens existia somente em Montevideu e em algumas grandes cidades. Mas o maior apoio estava no interior, por causa da televisão. Era muito importante levar a luta a esses lugares, com dados que mostrassem que a mídia não dizia a verdade. Que garotos de 13 a 17 anos já são penalizados e submetidos à privação de liberdade em centros de reclusão que não deixam nada a desejar aos presídios. E que os que estão nesses institutos são sempre os mesmos.
Quando o movimento ganhou maciçamente a população?
Entre 2012 e 2014 a Comissão compatibilizou as propostas com manifestações, caminhadas pelas ruas, e conseguiu envolver uma massa de gente. Muitos jovens, mas também população adulta. Nesses anos foram feitos os Amanhecer contra a Redução, que começam a ser feitos também no Brasil. Em 2014 a Marcha da Diversidade – que no Uruguai é uma grande festa – apoiou o não à redução e ao retrocesso dos direitos. Uma canção foi criada especialmente para a campanha.
Quem a financiou, e que papel tiveram as redes sociais?
Foi uma campanha muito barata. Nos dois primeiros anos, tivemos só o aporte do que cada um sabia fazer – um vídeo com personalidades do mundo político e cultural dizendo não à redução e porque, realizado pelo puro amor e puro saber de dois ou três companheiros. Foi tudo feito muito através das redes sociais, todas as convocações, e o cartaz Si me preguntan digo No a La Baja viralizou na rede. Músicos que estavam com a causa doavam sua arte fazendo shows nas ruas.
No último ano e meio, aí sim, os partidos políticos contrários à redução fizeram seu aporte, os sindicatos fizeram grandes aportes, e organizações também. A Casa Bertolt Brecht recebeu financiamento da Fundação Rosa Luxemburgo para organizar um debate com especialistas internacionais – uma neurocientista, um advogado, um psicólogo – nessa ideia de fazer confluir aportes de todas as áreas.
Nessa caminhada, a Comissão notou que havia muita desinformação, por exemplo sobre o sofrimento dos garotos em conflito com a lei. Então fizeram um vídeo que traz informações sobre a juventude e mostra que eles não são perigosos, antes, são eles que estão em perigo.
Como você vê a luta contra a redução aqui no Brasil?
Aqui se tem de fazer muita difusão de informação. No debate que fizemos ontem (27.04), ouvi dados terríveis: sete garotos são assassinados a cada duas horas no Brasil, e de cada dez, oito são pretos. Dona Maria, Seu João têm de saber que sucedem muito mais coisas do que mostra a Globo, como falta de oportunidade de ensino, trabalho, cultura etc.
Quando fui convidada a vir aqui, tive medo de trazer um receituário. Mas há muita semelhança entre a situação aqui e a do Uruguai, são usados os mesmos argumentos, vocês têm as mesmas dificuldades. Julio Bango, deputado da Frente Ampla, Partido Socialista, compilou informações e colocou-as num vídeo muito útil. Seria interessante que se fizesse algo assim aqui.
Temos pouco tempo para articular a campanha…
Nossa campanha foi vitoriosa no ano e meio de mobilização de rua, e não em 4 anos. Revertemos a opinião pública quando todas a pessoas que são referência falaram não à redução, pessoas de todas as idades saíram às ruas, e as informações foram sendo divulgadas. Temos um documento-base com todos os argumentos de porque não reduzir. Foi um grande trabalho, importante por contar com todos os respaldos.
Quais os argumentos mais importantes?
Recolhemos experiência nos cárceres de adolescentes. Para aqueles que sofreram violência e querem vingança, é preciso dizer que os garotos são presos e passam muito mal. Argumentos na linha dos direitos humanos não funcionam, porque acham que eles não devem ser defendidos. Dizíamos: senhora, seu filho quantos anos tem? Considera que já é adulto? E aqui a neurociência ajudou bastante.
E como foi o dia da vitória?
Voto ainda em Rivera, porque lá falta gente de esquerda, então mantive meu voto lá. Nas eleições nacionais de 26 de outubro, meus companheiros ligavam dizendo vamos perder, porque até o fim as pesquisas davam esse resultado. Meus companheiros que estavam mas mesas eleitorais diziam isso e chorávamos pelo telefone. Às 8 ou 9 horas da noite começaram a sair os resultados e um dos maiores institutos de pesquisa, de direita, declarou: sai a redução. A gente estava paralisada. Mas, uma hora depois, quando mostraram os dados das mesas eleitorais, eles tinham 47% dos votos. A população disse No a La Baja! E aí fomos para a rua, fizemos uma grande festa da vitória.
Depois disso, não tinha sentido manter a Comissão, uma frente ampla onde se sentavam juntos gente de partidos de direita – como os blancos que diziam No – e de esquerda. Então a Comissão se desfez, e hoje apenas um ou outro coletivo continua trabalhando na temática da violência e adolescentes.
Como a Casa Bertolt Brecht, que está fazendo uma pesquisa sobre medidas não privativas de liberdade. Entrevistamos técnicos, e eles nos dizem que trabalham com isso há 20 anos e nunca viram uma pesquisa sobre o assunto. Segundo a lei, e me disseram que no Brasil é a mesma coisa, as medidas de privação da liberdade são a última opção, tanto aqui como lá. Então a gente não fala de medidas alternativas, pois elas na verdade são prioritárias.
A pesquisa sai até o final do ano, e em agosto pretendemos fazer um seminário regional do Cone Sul com experiências positivas. Sabemos que em alguns cantões da Europa fala-se em aumentar a maioridade penal até 20, 21 anos. Queremos dar visibilidade a essas experiências e às práticas não privativas de liberdade.
Fonte: Outras Palavras
Link:
http://outraspalavras.net/brasil/maioridade-penal-que-aprender-com-o-uruguai/

Boaventura, de Atenas: Syriza e Podemos em xeque



Como os “grandes poderes” europeus movem-se, em silêncio, para sufocar partidos que questionam aristocracia financeira. Por que solidariedade tornou-se indispensável
 Por Boaventura de Sousa Santos

Escrevo de Atenas, onde me encontro a convite do Instituto Nicos Poulantzas para discutir os problemas e desafios que enfrentam os países do sul da Europa e as possíveis aprendizagens que se podem recolher de experiências inovadoras tanto na Europa como noutras regiões do mundo. Convergimos em que o que se vai passar nos próximos dias ou semanas nas negociações da Grécia com as instituições europeias e o FMI serão decisivas, não só para o povo grego, como para os povos do sul da Europa e para a Europa no seu conjunto.
O que está em causa? Defender a dignidade e o mínimo bem-estar de um povo vítima de uma enorme injustiça histórica e de políticas de austeridade (para além do mais, mal calibradas) que espalharam morte e devastação social (bem visíveis nas ruas e nas casas) sem sequer atingir nenhum dos objetivos com que se procuraram legitimar. Não admira que o primeiro ponto do programa de Salónica do Syriza seja o alívio imediato da grave crise humanitária. Com um envolvimento militante que há muito desapareceu dos cinzentos políticos europeus, a vice-ministra para a solidariedade social, Theano Fotiou, fala-me do modo como está a ser organizado o resgate dos que caíram em pobreza extrema (programas de alimentação, eletricidade e tratamento médico gratuitos), não deixando de salientar a cooperação, de algum modo surpreendente, que tem tido dos bancos gregos para gerir o sistema de pagamentos. Para além das políticas de emergência, o programa do Syriza, tal como o de Podemos na Espanha, é um programa social-democrático moderado. Esta é a grande ironia da Europa: os sociais-democratas de ontem são os liberais de hoje; os revolucionários de ontem são os sociais-democratas de hoje. As principais linhas vermelhas que Syriza não pode deixar cruzar referem-se à redução das pensões e ao fim da contratação coletiva. Trata-se dos dois pilares principais da social-democracia europeia. Ao defendê-los, o Syriza está a defender o que há de mais luminoso no patrimônio político, social e cultural da Europa do último meio século. É uma defesa corajosa no processo de negociação mais assimétrico e desigual da história europeia (e talvez mundial) recente. Uma defesa que só não será solitária se puder contar com a solidariedade ativa dos cidadãos europeus para quem o pântano da resignação não é opção.
O que vem aí? Costumo dizer que os sociólogos são bons em prever o passado. Mas não é difícil ver nos sinais disponíveis mais razões para pessimismo do que para otimismo. Surpreendentemente, um desses sinais mais perturbadores para os gregos é o programa econômico recentemente apresentado pelo PS português. A radicalidade conservadora de algumas propostas, sobretudo no domínio das relações laborais e das pensões (mais conservadoras do que as do partido socialista espanhol e muito semelhantes às do novo partido conservador espanhol, Ciudadanos), leva a considerar que ele foi elaborado com inside knowledge, isto é, com conhecimento prévio e privilegiado das decisões, por enquanto secretas, que os “grandes decisores” europeus já tomaram em relação à Grécia e aos países do sul da Europa. Tanto no domínio das pensões (erosão das condições de sustentabilidade para justificar futuras reduções) como no das relações laborais (erosão fatal da contratação coletiva), o PS propõe-se uma política que viola as duas linhas vermelhas principais do Syriza e, que, aplicada entre nós, porá fim à mitigada social-democracia que conquistamos nos últimos quarenta anos. Pré-anúncio de que o Syriza vai ser trucidado para servir da vacina contra o que pode ocorrer na Espanha, na Irlanda, em Portugal e mesmo na Itália? Não sabemos, mas é legítimo ter uma suspeita e uma certeza. A suspeita é que os “grandes decisores” visam atingir o coração do Syriza, fazendo com que parte dos seus apoiantes (sobretudo os que não dependem de ajuda humanitária) o abandonem, eventualmente com a promessa ardilosa de que sem o Syriza poderão obter mais benesses europeias do que com ele. A certeza é que, com a derrota do Syriza, os partidos socialistas que em tempos optaram pela terceira via saberão em breve que esta via é em verdade um beco sem saída.
Fonte: Outras Palavras
Link:
http://outraspalavras.net/capa/boaventura-de-atenas-syriza-e-podemos-ameacados/