quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

A democracia brasileira não vai à praia. Por Luiz Eduardo Soares

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 Diario do Centro do Mundo

  Atualizado em 27 de dezembro de 2023 às 11:21

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Dedicado a Manuel Domingos, Pedro Celestino e André Castro

Li com perplexidade e indignação a entrevista ao Globo do governador do estado do Rio, Claudio Castro, publicada em 16 de dezembro de 2023: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles. Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.”

A quem se dirige a ordem do governador, a qual condiciona o acesso à praia de menores de 18 anos à apresentação de documentos e à presença de responsáveis? A frase é muito clara: dirige-se a todos que desejem ir à praia. Entretanto, nenhuma informação suplementa a ordem. Claudio Castro não diz, e estranhamente o repórter não pergunta, como agentes do Estado montarão guarda nos calçadões para verificar documentos e atestar a presença de responsáveis, os quais, por sua vez, seriam identificados a partir de quais critérios? Todo o efetivo da PM seria mobilizado? Muros seriam erguidos com catracas e guichês? A medida seria aplicável a todas as praias fluminenses? Quantos recursos materiais, humanos e financeiros seriam investidos? Quais bases legais sustentariam a iniciativa? As prefeituras das cidades envolvidas haviam sido consultadas? Disponibilizariam guardas municipais e outros funcionários públicos para viabilizar o controle previsto na ordem do governador? Quais, exatamente, as faixas etárias alcançadas pela ordem restritiva? A questão em pauta é, realmente, o acesso à praia ou se estende aos bairros contíguos ao litoral? Jovens podem visitar livremente esses bairros? Quaisquer bairros? Ou haveria também condicionantes restritivos à circulação que não envolvesse as praias?

Não, nada disso: o que a estrutura lógica e gramatical da frase indica no plano semântico (a ordem é universal, dirigida aquemreside no estado do Rio) inverte-se no subtexto (a ordem se dirige a alguns e algumas, não elencados, explicitamente, mas subentendidos -não há dúvidas sobre quem são). Por outro lado, o acesso em tela de juízo não corresponde à chegada à praia, mas ao deslocamento cujo destino seja a praia -deslocamento que seria interceptado na origem ou em algum ponto do itinerário. Acesso pode ser concebido como um bem (a ser potencialmente usufruído -sendo comum, o benefício individual não reduz seu potencial de fruição), um direito (a ser exercido), uma possibilidade (física, material, desde que haja cidadãos e o bem deque trata o acesso, no caso, a praia) ou um ato (estar na praia, aproveitar o que ela oferece, o que pressupõe tê-la alcançado, ter chegado a ela) e um fato (a praia ocupada).

As ações policiais que constituem a referência implícita da declaração de Castro ocorrem no trajeto dos ônibus que transportam para a Zona Sul, nos fins de semana, moradores das áreas mais pobres da cidade e da região metropolitana. É nessas abordagens policiais que a triagem se faz. Os escolhidos são recolhidos a abrigos onde aguardam averiguações até o anoitecer -digo escolhidos porque não caberia aqui a categoria suspeitos, pois sequer há crimes em marcha, em preparação, ou indícios de organização para seu cometimento–e ainda não contamos com a antecipação paranormal dos investigadores de Minority report-o filme de Steven Spielberg, inspirado no conto de Philip K. Dick. Percebam: ao anoitecer, usualmente, esgota-se o prazo de validade da praia como espaço de diversão. Portanto, Castro reconhece que a pena -sim, pena sem crime, sem acusação-aplicada aos jovens antecede e independe do resultado das tais “pesquisas sociais”. Voltemos à sua declaração: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles.”

A frase do governador é maliciosamente elíptica, sob a forma do discurso universal: em primeiro lugar, sob aparência de uma relação diádica (emissor, o governador, e receptor, a audiência universal pela mediação do repórter e, portando, do jornal), estipula, na prática, uma relação triangular, ao operar uma distinção entre dois tipos de receptores: aqueles a quem realmente a ordem é dirigida e os demais, não visados pelas restrições, que apenas testemunham o ato de fala governamental e cujo silêncio obsequioso (o repórter cala as interrogações cruciais) confirma, simbolicamente, a legitimidade e a autoridade do comunicado emitido. Observe como a ironia mal dissimulada mascara a duplicação dos tipos de receptores: “Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa.” Você remete a quem jamais se exigirá documentos ou o acompanhamento de responsáveis e, simultaneamente, a quem será alvo da exigência. A superposição mal disfarça o facciosismo e o enviesamento da ordem do governador sob a evocação do interlocutor universal.

Em segundo lugar, o discurso é inquietantemente elíptico e dissimulado. Cito, novamente: “Estamos pegando menores (…) e levando(…) Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia.”Não, nenhum cerceamento na praia, de fato. Na praia temos atos (modalidades ativas do estar naquele local) e fatos (a ocupação da praia) tautologicamente comprobatórios da presença, presença que é o avesso da exclusão. Sendo assim, o acesso como um bem nãofoi negado, enquanto fato, ato ou possibilidade (uma vez que quem não estivesse na praia poderia, em princípio, lá estar -ninguém, em princípio, estaria impedido de exibir documentos e fazer-se acompanhar de responsável -e o caráter discriminatório da aplicação das exigências não macularia a afirmação do acesso como possibilidade universal). Daí se deduziria que o direito fora preservado, o acesso como direito permaneceria respeitado, protegido, tutelado, garantido. O pulo do gato violador está justamente na confusão intencional e ardilosa entre acesso como direito abstrato (correspondente ao não cancelamento da possibilidade de fruir) e direito objetivo (correspondente à sustentação da equidade na distribuição das condições efetivas de experimentar a possibilidade).

Ninguém, no Brasil, está impedido, em princípio, de beneficiar-se da educação pública, ou seja, o acesso à educação, do primeiro ao terceiro graus, é possível -e esta possibilidade é um bem precioso tutelado pelas autoridades responsáveis (do MP ao Executivo, passando pela Defensoria e a Justiça). No entanto, há políticas afirmativas, como as cotas, e elas foram consideradas constitucionais pela Suprema Corte, em decisão unânime. Para que servem as cotas? Reduzir a iniquidade que se verifica, concretamente, na distribuição das condições em que os grupos sociais experimentam a possibilidade.

O governador do Rio está introduzindo fatores que reduzem a equidade na distribuição das condições efetivas de vivenciar a possibilidade. Sua decisão confronta princípio axial da Constituição, a equidade no acesso a bem público -ele criou a anti-cota ou a cota para a exclusão. Trata-se de um experimento perverso na linha do apartheid, comaspectos sociais e raciais.

Confesso que as palavras do governador produziram em mim um efeito devastador: se não há mais nenhum limite, nenhum pudor, se o cinismo pode se expor sem pejo, se a racionalidade não é mais parâmetro para argumentos, se o discurso da autoridade máxima do Executivo pode sacrificar qualquer compromisso com o respeito à inteligência dos interlocutores, o que esperar dos cidadãos que o escutam? O pacto que estabelece as condições mínimas para o diálogo no espaço público democrático estava rompido, unilateralmente. No vácuo, prosperam o negacionismo e o niilismo, venenos corrosivos, armas de destruição em massa daquilo que, um dia, com boas intenções (embora, idealistas), foi chamado senso comum: o consenso mínimo indispensável àvida em comum, substrato que não impede as diferenças, ao contrário, as torna possíveis e lhes dá sentido.

O governador atirou no que viu e atingiu o que não viu: alvejou a crítica do MP às ações policiais e implodiu os alicerces inter-subjetivos da linguagem e da cultura. Castro declarou guerra (sem quartel e bandeiras, a guerra hobbesiana pela subordinação do sentido à força, a guerra de todos contra todos) ao minar o campo do mútuo entendimento, ao implodir o discurso como espaço público da argumentaçãoracional. E, como disse Shakespeare: quando falta a linguagem, prevalece a violência.

Minha perplexidade se agravou ante o posicionamento do TJRJ.

LINK: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-democracia-brasileira-nao-vai-a-praia-por-luiz-eduardo-soares/


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